Mario Sabino

Título: O Dia em que Matei Meu Pai L522
Autor: Mario Sabino
Editora: Record
Ano: 2004
Edição: 1
Número de páginas: 224
Mesclando suspense, tragédia e uma profunda reflexão sobre a alma humana, o romance O dia em que matei meu pai assinala a estréia de Mario Sabino ? editor-executivo de Artes e Espetáculos da revista Veja ? na literatura. Partindo de uma trama aparentemente simples, a do narrador que conta à sua analista os motivos pelos quais matou o pai, o autor desenvolve uma obra na qual a psicanálise, a filosofia, a religião e a literatura se sobrepõem num discurso marcado pela dissimulação. Uma história de mistério em que o leitor deve descobrir não o crime ou o criminoso ? explícitos desde o título ? mas as motivações para o ato.
Fonte: Revista Veja - Edição 1844 - 10/03/04
por Carlos Graieb
Jogos de sedução
A estréia literária provocante e envolvente de Mario Sabino em O Dia em que Matei Meu Pai
Dois tipos de sedução aguardam o leitor de O Dia em que Matei Meu Pai (Record; 221 páginas; 25,90 reais). Primeiro, a sedução do bom texto literário, à qual ele pode se entregar sem medo. O romance de estréia do jornalista Mario Sabino, editor executivo de VEJA, é daqueles que se devoram rápido, de preferência de uma vez só, porque a história é envolvente e a linguagem, cristalina. Sabino possui atributos fundamentais para um ficcionista, como o poder de criar imagens precisas: em seu texto, ao ser atingido pelas costas um personagem não apenas se curva antes de desabar; ele se curva como se fosse "para amarrar os sapatos". Sabino também apresenta ao leitor uns tantos conceitos para ruminar, na tradição do romance de idéias, mas faz isso com leveza e sem um pingo de obscuridade. A segunda espécie de sedução em O Dia em que Matei Meu Pai é exercida pelo protagonista, só que agora de maneira perigosa. Sabino, claro, empresta as armas de encantamento ao seu personagem, mas nunca é demais lembrar que criador e criatura não se confundem. O anti-herói do romance rompeu o tabu primário de qualquer sociedade. Preso num sanatório, ele tenta convencer uma psicanalista - e o leitor por tabela - de que o seu crime de parricídio, anunciado logo nas primeiras frases, tem justificativa. O protagonista do livro de Sabino é um exemplo de "narrador não-confiável". Seu protótipo na ficção brasileira é o Dom Casmurro de Machado de Assis, que torce sutilmente os fatos, dissimula e manipula para convencer os outros de que sua mulher, Capitu, foi adúltera. Em O Dia em que Matei Meu Pai, o narrador quer nos persuadir de que seu pai foi um monstro. Muito rico, esse homem não nutriria nenhum respeito pelas leis ou pelos outros. O principal alvo de sua perversidade seria o próprio filho, atormentado desde a infância. O narrador chega a sugerir que o pai o molestou sexualmente quando criança. Mas nada é assim tão certo. A acusação de molestamento é feita, retirada, feita novamente. Da mesma forma, outras crueldades podem ou não ser reais. Será que por trás do parricídio não está apenas o orgulho de alguém que nunca saiu da sombra do pai, alguém que passou a vida sentindo-se diminuído e recorreu a um ato extremo para abrir seu espaço no mundo? Se o motor do crime foi mesmo o narcisismo, a última coisa que o narrador deseja - agora que se sente livre pela primeira vez - é ver-se reduzido a categorias que outros inventaram, e que poderiam ser usadas para descrevê-lo. É por isso que ele discute psicanálise, filosofia e ciência, e vai desclassificando as aplicações de cada uma ao seu caso - com muita verve e humor, e por isso da forma mais perigosa. A certa altura, ele grita para sua analista: "Não quero saber de interpretações. Faça-as longe de mim, e sem a minha colaboração. De que elas servem, meu Deus? Você, aqui, não passa de coadjuvante, está entendendo? Por isso, não tente ser protagonista por meio de suas interpretações". Todos os malabarismos do narrador são para construir uma grande teoria sobre a moral e o livre-arbítrio e justificar o assassinato que cometeu. Ele lança mão inclusive de um romance que iniciou e nunca concluiu, e que trata "da origem do Mal em nossas almas". Esse romance dentro do romance é um dos bons achados de O Dia em que Matei Meu Pai. Ao mesmo tempo, o narrador parece considerar Sigmund Freud, o criador da psicanálise, o seu principal "rival". Não é por acaso que ele resolve contar sua história a uma analista. Foi Freud, afinal de contas, quem criou conceitos como "complexo de Édipo" (que fala sobre o desejo que toda criança teria, num estágio inicial de desenvolvimento, de aniquilar seu pai) e "narcisismo", que parecem se aplicar tão bem a tudo que está em jogo para ele. Sabino, obviamente, é um leitor assíduo de Freud e escondeu em seu livro até mesmo uma curiosa reinterpretação da tese central do livro Totem e Tabu. Nessa obra, Freud argumenta que o surgimento da civilização estaria ligado ao complexo de Édipo. Em tempos imemoriais, diz ele, nossos ancestrais, em suas "hordas primitivas", teriam realizado o parricídio. Os sentimentos decorrentes desse feito - sobretudo a culpa - levaram à formação de tabus que organizaram a vida em grupo e impediram a guerra de todos contra todos. O narrador de O Dia em que Matei Meu Pai também acredita que recriou o universo à sua volta ao matar seu pai. Mas nesse universo - cuidado, leitor - não há lugar para os outros, a não ser como sombras da vontade e da imaginação desse grande manipulador. O livro de Mario Sabino, repita-se, é uma leitura fluida e divertida. Não tem nada de "difícil" - mas dá muito o que pensar

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(...) Cada livro, cada volume que você vê, tem alma. A alma de quem o escreve, e a alma dos que o leram, que viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro troca de mãos, cada vez que alguém passa os olhos pelas suas páginas, seu espirito cresce e a pessoa se fortalece.

(A Sombra do Vento - Carlos Ruiz Zafón)